Corrigindo 80 anos de injustiça literária, histórica e social. Conheça com exclusividade quem foi o precursor das Ligas Camponesas 20 anos antes de João Pedro Teixeira, Nêgo Fuba, Pedro Fazendeiro e Elizabeth Teixeira
O AUTOR – O romancista Permínio Asfora, filho de imigrantes palestinos, autor da obra “Noite Grande”, foi o primeiro descendente de árabes a escrever um livro no Brasil. Sua ambientada no Piauí inaugura o ingresso na literatura brasileira de um palestino como personagem central. Trata-se da primeira obra literária no Brasil que possui uma personagem palestina. Quando perguntado de onde era natural, respondia sem titubear: de Sapé. Outra importante obra do autor, Sapé: 1940, retrata o cotidiano duro e feroz daqueles tempos que antecederam em 20 anos os conflitos sangrentos que viriam a acontecer na década de 1960.
Pouquíssima gente soube da reedição, após 75 anos de esquecimento proposital e também do relançamento do romance intitulado “Sapé”, de Permínio Asfora, pela Editora da Universidade Federal da Paraíba (publicado em sua 2ª edição com data de 1º de dezembro de 2015), que constituía dívida de reconhecimento à obra e ao autor, excluído do cânone nacional por questões ideológicas e políticas nos anos 1930.
Assim, corrige-se agora, embora quase que tardiamente, um dos atos de despotismo histórico-literário, em respeito ao romancista piauiense de nascimento, mas paraibano de coração, cuja obra é expressão da arte romanesca social nordestina. São 250 páginas povoadas de personagens com nomes fictícios, mas existentes na vida real, nos anos de 1940, na cidade de Sapé.
Os nomes das pessoas foram trocados de propósito, para proteger a privacidade dessas ilustres figuras daquela época e ao mesmo preservar a sobrevivência física do autor, que certamente correria grande perigo de vida, com imenso risco de morte, se fosse nomear oficialmente os personagens da vida real retratados em seu livro, cujas histórias são rigorosamente verdadeiras e jamais inventadas.
Não se trata de criação imaginária, produto de uma mente literária fértil, mas da retratação do cotidiano duro e feroz daqueles tempos que antecederam em 20 anos os conflitos sangrentos que viriam a acontecer na década de 1960, entre fazendeiros, latifundiários e usineiros, contra trabalhadores assalariados, pequenos agricultores e integrantes das famosas Ligas Camponesas.
FRASES DELE:
– Sempre que me perguntam de onde sou natural, respondo sem titubear: de Sapé. Foi em Sapé que conheci o que era “morar”. Antes, éramos apenas “passageiros”.
– Sou apenas, sem me derem esse direito, um imaginador de histórias. Feias ou bonitas, tristes ou alegres, mas dessas histórias que a gente pode encontrar pelos caminhos da vida.
– O romance não só deve estar ligado aos problemas humanos – no sentido de retratar esses problemas – como até mesmo, em certos momentos críticos da vida dos povos, deve servir de instrumento de combate e libertação.
FRASES SOBRE ELE:
MÁRIO DE ANDRADE – O entrecho segue com ótima naturalidade, não se percebe nada de “forjado” nos fatos que sucedem. Quanto à linguagem não há dúvida nenhuma que você tem nas mãos um tesouro de expressão linguística regional.
JOSÉ LINS DO REGO – O que se sente em suas páginas é que o amor se expande pela humanidade em geral.
RACHEL DE QUEIROZ – Creio que é hoje Permínio Asfora o mais significativo representante da tradição do “romance nordestino” continuador da nobre linhagem literária de José Lins do Rego e de Graciliano Ramos.
Segundo a professora de Literatura Brasileira da UFPB, Wilma Martins de Mendonça, pesquisadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da mesma instituição, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da UFPB, o primeiro romance de Permínio Asfora, “Sapé”, foi publicado em 1940, três anos depois da saída do escritor Graciliano Ramos (1892-1953) da cadeia.
Encarcerado, por motivações ideológicas, o romancista nordestino percorreria várias instituições brasileiras, durante o período de março de 1936 a fevereiro de 1937, fase, essa, que corresponde ao contexto de gestação e consolidação do Estado Novo, período que abarca os anos de 1937 a 1945, comandado pelo ditador Getúlio Dornelles Vargas, que chegou ao poder com a chamada Revolução de Trinta.
O encarceramento do escritor alagoano – sem acusação formal, sem processo judicial, nem tampouco o direito à sua própria defesa – sinaliza claramente para o estado de anomalia social do Brasil da época, de Graciliano Ramos e Permínio Asfora. Mesmo não tendo destino igual ao de Graciliano, o romancista piauiense/paraibano também sofreria perseguições e acossamentos políticos, sutis e explicitados, como ilustra a interdição de “Sapé”, decretada pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) do Governo Vargas.
O forte realismo com que Permínio Asfora compõe a feição da Paraíba em 1930 e o lugar, abertamente solidário aos trabalhadores, de onde fala o seu narrador, transfigura as suas letras em armas perigosas, incompatíveis à minguada cartilha do Estado Novo.
A interdição de “Sapé” tampouco amorteceria os vínculos de empatia e de solidariedade aos trabalhadores paraibanos, que desabrocham, repetidamente, na romanesca de Permínio Asfora, em especial naquelas que se ocupam das representações do agricultor, a exemplo de “Vento Nordeste”, lançado dezessete anos após a censura de “Sapé”. Em sua quarta narrativa, Permínio Asfora revisita, literariamente, várias áreas rurais e municípios paraibanos, entre eles Sapé, no mesmo tom e modo que marcam o seu primeiro romance.
Dessa força, tanto “Sapé”, quanto “Vento Nordeste” se constituem como denúncias ficcionais das iniquidades praticadas contra os camponeses nordestinos.
Pouco comum em nossa história literária, a censura livresca e a supressão canônica de expressivas obras, fundamentais a nossa memória literária e cultural, atingem, brutalmente, as letras paraibanas, de 1940. O nocivo encobrimento de “Sapé”, no índex canônico, foi – e ainda continua a ser – determinante para o laconismo crítico que cerca essa narrativa e os romances posteriores do autor, circunscrevendo-os, consequentemente, a um pequeno público-leitor.
O amordaçamento de “Sapé” se arrastaria tempo afora, como se a mão censória, possessa e autoritária, pudesse também ter os dons de perenidade e da inexorabilidade, conforme sugere o verso de Carlos Drummond de Andrade, de seu poema “Os Rostos Imóveis”, do livro “José” (1942): “– O próprio corregedor morrera há anos, mas sua mão continuava implacável”.
A titulação da narrativa asforiana é, incontestavelmente, um preito de deferência à cidade onde o autor cresceu. Nascido no Piauí, primeiro filho de uma família árabe-brasileira – seu pai, Sales Mussa Asfora, era um imigrante palestino e sua mãe uma jovem piauiense – Permínio Asfora viveria, contudo, na cidade de Sapé, como registra o autor no pórtico de sua narrativa: “Tendo vivido quase toda a infância e parte da adolescência numa das zonas algodoeiras da Paraíba, na época, pensei em escrever este livro”.
Escrito no modelo que marcou a produção modernista do Nordeste, o romance de Asfora se inclina para o mundo agônico dos trabalhadores, em particular daqueles que lidavam com as roças do algodão da cidade de Sapé, sem esquecer-se dos que viviam nos afazeres dos engenhos de cana-de-açúcar e nas labutações proto-urbanas da então nascente povoação.
A narrativa se inicia com a chegada, a Sapé, da notícia do assassinato de João Pessoa. Longe da comoção, a morte do mandatário da Parahyba, despertava confusão e medo aos sapeenses, que não haviam votado no Presidente morto. A debandada é geral. Os Liberais desejavam se vingar de seus opositores, levando-os a abandonarem suas fazendas, em busca de um lugar seguro. A intranquilidade era geral. Vários criminosos haviam fugido da cadeia, na Capital da Província e atravessavam o Estado, atacando os opositores do Presidente assassinado.
Meu pai, José Meireles, cujo meu avô Abdias, tinham uma venda de secos e molhados (atualmente chamada de mercadinho popular), me relatou que a população gritava, meio sem saber ao certo do que se tratava, brados de “Viva Liança Labalá”, referindo-se ao partido Liberal, cujo nome eles não compreendiam direito e saíam assim mesmo, exclamando erradamente, aos berros enfurecidos.
No livro de Permínio Asfora, entre as páginas 65 a 67, ela conta o clima de terror que a população vivenciou, naquela época: “Os partidários do Liberal estavam no auge do endurecimento contra os adversários. A Vila de Sapé perdia aquela eterna pacatez. A vilazinha serena não tinha mais aquela cordura. E em Sapé já se falava em matar gente. De manhã, circulou a notícia de que tinham saído da Capital vários oficiais da Polícia para prender uns adversários de Sapé. Foi um alvoroço medonho. Isso ainda agravara mais a situação. Uma multidão, vinda do telégrafo, passou pela rua em forma de passeata, ameaçando os inimigos do Governo. Os Conservadores esconderam-se.”
Através de um olhar focado no espaço das plantações de algodão existente em Sapé naquela época, bem antes da existência das imensas culturas de cana-de-açúcar e exportações de abacaxi, terminariam por flagrar a Paraíba, em seu ingresso na modernidade, assinalando a substituição da Inglaterra na hegemonia do capitalismo mundial pelo nascente Estados Unidos da América do Norte.
Na verdade, a modernidade capitalista dos EUA, atropela e devasta a economia algodoeira paraibana, levando à bancarrota muitos plantadores, herdeiros dos barões da época do Brasil Império.
Esses pequenos núcleos ideológicos são a gênese das Ligas Camponesas que eclodiriam, como movimento dos agricultores sem terra ou posseiros, em meados da década de 1950, com forte atuação até o Golpe de 1964. Entre elas, a Liga de Sapé se destacaria como uma das mais importantes. O silêncio anterior se transformava numa luta aberta e destemida pelo direito à terra. A semente germinara.
Após 75 anos, Permínio Asfora e o seu romance “Sapé” readquirem o direito de falar, numa demonstração inequívoca de que não se cala a literatura. Com a republicação de “Sapé”, saem do limbo, a que foram condenados, o mundo e os personagens criados por Permínio Asfora, pedaço de nossa história. O confisco arbitrário chega ao fim. A mão censória despencou. A mordaça ruiu. Permínio Asfora e o seu romance voltam para casa: Sapé. Oitenta anos depois.
Texto de Giovanni Meireles para o Portal GPS.
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